A Fermentação Importa
- rannison rodrigues
- 4 de mai. de 2022
- 4 min de leitura

Eu não sei você, mas eu gosto de pão. Uma das minhas memórias afetivas mais queridas é de, quando criança, passar manteiga no pão quentinho e vê-la derretendo. Que delícia! E neste particular, o melhor de todos era o do meu pai. Veja, até hoje não encontrei ninguém capaz de fazer algo tão bom. A gente teve padaria por alguns anos e, enquanto meu pai fez o pão, vinha gente até de outras cidades para comprar o lendário pão do Chico.
Dos 10 aos 16 anos, aproximadamente, eu trabalhei num balcão de padaria. Sempre dentro do que os horários escolares permitiam, mas, fosse nas padarias dos meus tios ou nas do meu pai, lá estava eu. E fazia outras coisas, é claro. Uma delas era assar pão. Mas, para assá-los, precisava saber quando estavam no ponto certo. E por isso, fui aprendendo sobre o que acontecia até chegar a hora.
Via meu pai produzindo a massa, com todo cuidado. Ele era tão detalhista, tão minucioso. Pesa isso, mede aquilo, põe na masseira, passa no cilindro, corta, modela, põe nas telas e coloca no armário até chegar a hora de cortar os pãezinhos e assá-los. Quentinhos, com sorte, produziriam outras memórias afetivas em pessoas que eu nem conhecia. Ótimo!
Um dia, meu pai preparou uma "massa rápida", que levava mais fermento, com o objetivo de deixar o pão pronto para ser assado o quanto antes. Ele me avisou: "Presta atenção que essa é massa rápida." Era um dia quente e eu era um balconista distraído. A massa cresceu demais e "arriou". Perdemos muitos pães, mas consegui salvar a maior parte. Entretanto, quando provei, achei o gosto péssimo. Mesmo assim, ninguém voltou para reclamar e até os clientes de todos os dias não mencionaram nada.
Mas eu estava me sentindo culpado pela displicência e pela infidelidade ao pão do meu pai, e contei a ele sobre o ocorrido. Ele não ligou muito. A verdade é que pelo menos vendemos quase todos os pães, o que era ótimo. E, mais importante que isso, não ficou chateado quando disse que tinha achado o gosto estranho. "Era massa rápida", disse ele, feita para encher a barriga e não para ser gostosa.
Com o tempo, entendi que aquela lição de fermentação serviria para a vida. Especialmente hoje, neste momento em que vivemos numa sociedade de "massa rápida". Muito fermento, tudo é sobre crescimento rápido. Mas tão rápido quanto cresce, arria. E no processo, tudo vai perdendo a graça, porque o gosto não agrada muito e já não nos resta nem a memória afetiva. De só encher a barriga, vamos ficando com os corações vazios.
A quantidade e qualidade do fermento (desejos, intenções, atenções, dinheiro) que nós dedicamos a algo, tende a ser diretamente proporcional ao resultado que extraímos. Se você encontrar a medida justa de fermento, se dispuser a trabalhar a massa sem preguiça e com minúcia, e se souber esperar o momento certo, sem pressa ou atraso para assá-la, o pão vai sair maravilhoso. Vai encher sua barriga e também agradar à alma.
Acredito que esse entendimento pode explicar muito do que vemos acontecendo. As empresas que valem bilhões, mas não dão lucro; os relacionamentos de capa de revista que acabam como se nunca tivessem existido; a quantidade impressionante de músicas lançadas (todas iguais) e das quais ninguém lembra, nem se emociona mais; nossas opiniões políticas e nossas convicções éticas; as pessoas e os seus empregos, etc. Vivemos num zeitgeist de fermentação rápida. Não deixamos a massa crescer e se tornar deliciosamente agradável. Não sabemos esperar, não entendemos o valor da espera.
Não é uma crítica. Só uma constatação. Levei anos para entender que minha ansiedade, minha inquietude, só jogavam contra mim. Fermento demais, sabor esquisito. Mas, o triatlo, as ultras, a massa de pão do meu pai, me ajudaram a perceber isso. Grandes coisas são compostas de várias pequenas. O pão cresce com qualquer quantidade de fermento, mas a qualidade não será a mesma.
Depois de ler e aprender bastante sobre a vida de pessoas admiráveis, uma das coisas que mais se destaca, em quase todos os casos, é a ideia de começar pequeno e ir crescendo, expandindo. Como uma massa de pão. Você não abre uma empresa hoje, por exemplo, e amanhã se torna trilhardário. Buffet, Bezos, Lemann e tantos outros grandes, não são pães de "massa rápida". A natureza não dá saltos. Há um processo e é preciso respeitá-lo.
Quando, numa entrevista, ouço um jovem reclamar porque está na empresa há 9 meses, mas ainda não foi promovido e está se sentindo desvalorizado; como se aquele fosse um direito líquido e certo dele; me pergunto como foi que provocamos isso. A única resposta que me vem é "fermento demais". Porque fermento também é ego, e também arria nossas capacidades. Aprendi isso com os judeus.
Na festa de Pessach, a páscoa judaica, que dura uma semana, os judeus não comem pão fermentado (chametz), apenas pão ázimo (matza). A tradição conta que é assim porque ao sairem do Egito, os judeus não tiveram tempo de esperar a fermentação dos pães. Contudo, durante pessach é proibido comer alguns grãos fermentados. Por que? Demorei a entender, mas aprendi que há uma lição mais profunda. A libertação (saída do egito), não pode andar junta com o ego (fermento). Os judeus são sábios.
O ego nos faz "inflar", nos achar melhores mais talentosos, mais especiais, mais merecedores do realmente que somos. Enchemos os jovens de fermento. Facilidades, direitos, promessas de conquistas sem merecimento. Alimentamos os egos deles e não só o deles. Vivemos num mundo projetado para alimentar egos. Os feeds das redes sociais, as facilidades infindáveis, os algorítmos que nos provam todos os dias que estamos certos, afinal tudo que vemos, lemos e ouvimos nos levam às mesmas ideias. Curioso, não? Não. É só fermento mal administrado, meu amigo.
A fermentação importa. E não apenas para viver melhor, mas para se sentir melhor acerca de como se vive. Nos ajuda a ver propósito na vida e não nos deixar abater pelos dissabores e nem ser seduzidos pelos elogios. Encontrar a justa medida da massa, sem deixar crescer demais e nem de menos. Sem se apegar demais ao ego, mas ver a função que ele tem. Não se deixar acorrentar, mas não se perder no deserto. É tudo sobre fermento. Aprendi isso fazendo pão e espero que seja útil para você também. Boa quarta!
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