Deveres Humanos
- rannison rodrigues
- 6 de fev. de 2022
- 4 min de leitura

Eu não sei você, mas para onde eu olho, tem alguém dizendo "não sou obrigado" ou "eu tenho direito…" E sempre fico pensando como isso se tornou um bordão, uma daquelas ideias péssimas que as pessoas só repetem sem refletir e que, aos poucos, vão prejudicando elas mesmas. Aparentemente, temos direito a tudo, tudo nos é permitido. Mas quais são os nossos deveres?
Embora eu admire muito Bauman e seu conceito de modernidade líquida, há coisas que, na minha opinião, não se sujeitam ao tempo ou à cultura. Por exemplo, o desejo de poder do homem, sua necessidade de conexão, de valor pessoal. E falo de tempos líquidos para dizer que, agora mais do que nunca, deveríamos buscar nossos deveres, mais do que nossos direitos. Porque os últimos são cada vez mais movediços, enquanto os primeiros podem nos servir de farol numa noite escura de tormenta em alto mar.
Noto que, ao buscar seus direitos, as pessoas tendem a minimizar a importância do direito alheio ou, pelo menos, relativiza-lo. Quando individualizam demais essa busca, então a fragmentam, a atomizam. E é assim que uma causa se torna praticamente qualquer coisa. Percebo isso, por exemplo, nos movimentos pelos direitos das minorias, movimentos políticos, movimentos intelectuais.
O direito, essa coisa que nos compete receber, se desacompanhado de um dever claro, nos desnorteia, nos torna parvos, egoístas e fracos. Pense em comida, por exemplo. Todos têm direito a se alimentar, contudo, parte da população mundial é obesa, ao passo que outra parte é subnutrida. E suspeito que isso aconteça porque não temos clareza do nosso dever, não fomos ensinados ao que "sim, somos obrigados".
Se ficasse claro, por exemplo, que seu direito à alimentação deveria estar diretamente ligado ao dever de ser saudável, você continuaria comendo desesperadamente até adoecer? Se não comesse em excesso, será que outros poderiam comer? Note: se tudo posso e nada devo; tudo me é permitido e nada me é exigido, um desequilíbrio se forma. Numa casa com duas pessoas, já seria um problema e tanto. Num mundo com mais de 8 bilhões, pode ser catastrófico.
Marco Aurélio dizia que "O que é bom para a colmeia, é bom para a abelha." Naturalmente, o contrário não é verdade. Você consegue imaginar um mundo como uma colmeia, onde todos tentem cumprir seu dever antes de tudo? Usufruir dos direitos não seria praticamente automático? Kant dizia que a felicidade se encontra ao buscar o dever humano e, acho que agora, finalmente, o entendo melhor. Ele tinha razão.
Se ainda não está claro, imagine uma fila no caixa do supermercado. Todos têm direito a ser atendidos, mas, se uma das pessoas considera que não é obrigada a esperar a sua vez e tenta furar a fila, as demais pessoas vão reagir. Afinal, por justiça, quem chega antes, deve ser atendido antes. Claro, esse cenário só é possível quando a maioria das pessoas tem o entendimento de seu dever. Porque se todas pensassem igual a que tentou furar a fila; desconhecendo seu dever e buscando apenas seu direito; e agissem da mesma forma, o que aconteceria? Desconfio que vivemos num mundo de furões de fila declarados.
Só que você deve estar aí pensando: "Não concordo, não vejo as pessoas tentando furar fila." Claro que não, era apenas uma ilustração. Porque na vida real, quando temos um risco real associado ao exercício do nosso egoísmo, nos tornamos menos dispostos a impor nossos "direitos" sonegando aos outros os seus. Mas, pela internet não. Lá não há risco real, fazemos "por baixo dos panos". E, hoje em dia, fazemos tudo pela internet. Por lá, não somos obrigados a nada, temos direito a tudo e a qualquer coisa. E isso está moldando nossos hábitos, nossos valores, nosso tempo histórico.
Não estamos mais dispostos a criar laços. Queremos seguidores, conexões. E a diferença entre laços e conexões, reside justamente na construção. Laços são obrigações, conexões são direitos. Pense num laço num presente, por exemplo, e na conexão do seu encanamento. Aquele laço não é padrão, ele não foi calculado com base num molde comum a todos os demais. Já a conexão do cano da sua pia, por exemplo, vai encaixar com qualquer outro cano, desde que o padrão seja similar. Nada pessoal, a ideia é substituir facilmente.
Mas, quando podemos substituir conexões facilmente, fica também mais simples nos concentrar apenas na busca dos nossos direitos. Porque não estamos atados a laços únicos e sim conectados a um tubo padrão, é fácil substituir. Se paro de receber o que quero, mudo. Afinal, "Não sou obrigado…", "Tenho direito". E se pensarmos assim, então o valor do outro está naquilo que ele pode me dar e não naquilo que é. Não há nenhuma obrigação envolvida.
Máximo retorno, mínimo investimento. Todos os direitos, nenhum dever. Você sequer precisa merecer o direito, ele simplesmente já é seu. Mais do que isso, não precisa dar nada em troca. É só querer e pronto. Logicamente, isso é impossível. Para ter o direito de colher, deve plantar. Para ter direito ao sucesso, deve se dedicar. Todo direito parece ser precedido por um dever e não o contrário.
Por isso, quando ouço as pessoas falando sobre seus direitos com tanto ânimo e com tão pouca empolgação sobre os seus deveres, imagino que esteja aí a raiz da nossa angústia coletiva. Porque a felicidade é um direito especial que, como diria Kant, só se encontra na busca pelo dever. Acho que estamos procurando no lugar errado. Não tem nada a ver com o que queremos receber e sim com o que temos de dar. O que você acha? Boa segunda!
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