Guerras Invisíveis
- rannison rodrigues
- 29 de jan. de 2024
- 4 min de leitura

Todo mundo está lutando batalhas que você não vê. Lembre-se disso. Eu me esqueci. Morando em São Paulo há alguns anos, sinto como se já fosse uma eternidade. Por aqui, entendi o que Zeca Baleiro queria dizer na sua música: “…mais solitário que um paulistano”. Por essas bandas é fácil perder os outros de vista.
Mas, como uma espécie de atração irresistível, a vida nos mostra e grava na nossa memória aquilo que deve nos ensinar alguma coisa. Esses episódios inevitáveis são tão imprevisíveis quanto simples. Quase sempre, não parecem com nada especial. Quase sempre, são como milagres: tantos, tão frequentes, tão presentes na vida, que nós já não lhes damos atenção.
Num domingo chuvoso, o vento soprava forte, arrancando as árvores do chão. Os raios iluminavam o céu escurecido pelas nuvens de chuva e a água que vinha do céu caía forte, fria, implacável. As gotas no chão tornavam-se poças, as poças se juntavam em pequenos lagos e as trilhas da montanha viravam corredeiras. O cheiro da terra molhada era maravilhoso.
Num canto, debaixo de uma pequena laje, um grupo de homens estava reunido. A chuva lavava o espaço lá fora, e eles confraternizavam. A simplicidade da ocasião chamava a atenção. Todos levaram algo: bebida, comida, aparelho de som. Se colocavam num círculo, como iguais. E, de repente, um deles levantou e começou a falar.
Passado algum tempo, aquele que parecia ser o líder, chamou pelo nome de um e contou brevemente sua história a todos no círculo. De longe, eu podia ouvir palavras como “orgulho” e “feliz”. Mas não entendi bem. Então, me aproximei. “Quero agradecer vocês. Narcóticos Anônimos mudou a minha vida.” A frase vinha de um homem de cabelos brancos.
O homem, em pé, apoiado numa parede, estava com os braços cruzados atrás de si. As pernas cruzadas, ele olhava para os pés ou para algum ponto no chão. Embora sua postura corporal lhe fizesse parecer acanhado, suas palavras fluíam com clareza. Era articulado, seu pensamento era coerente e a sinceridade com que falava era tocante.
“Eu preciso me perdoar”, falou ele, entre outras coisas. “Tô há três meses limpo e tô muito contente porque tô conseguindo ter disciplina.” “Eu ia antes num parque lá perto de casa e não conseguia caminhar quase nada. Agora já consigo caminhar 6 km. Ainda não corro. Mas já consigo caminhar”, dizia ele com orgulho indisfarçado.
“Minha mãezinha vai fazer 93 anos amanhã. E eu só queria que ela visse e tivesse orgulho de mim”, continuou. “Eu tô decidido. E é um dia de cada vez, entendeu irmão? Cê tá entendendo? Mas eu não volto mais, não. Nunca mais. O vício é uma coisa ruim demais. Mas eu já tô no caminho, cê entendeu? Agora eu preciso me perdoar.”
Eu estava na chuva. Estava subindo e descendo a trilha, como faço todo domingo. Reabasteci, tranquei o carro e voltei para a montanha. Aquela era a minha batalha daquele momento: enfrentar a ladeira, o frio, a chuva, enfim, fazer meu treino. Mas aquele homem me tocou. Me senti muito semelhante a ele. Eu sabia do que ele estava falando.
Nunca fui viciado em entorpecentes. Mas ele não tinha falado “vício em drogas”, ele tinha falado “vício”. E sobre isso eu sei algumas coisas. Aliás, meu querido leitor, quem é que não sabe? Nós nos viciamos em pensamentos, em formas, em histórias que criamos para nós mesmos. E esses vícios, percebi, são piores do que qualquer substância química.
Tem gente que passa a vida toda presa a um ressentimento. Isso não é um vício? Em outros casos, as pessoas se tornam dependentes de outras pessoas: da aprovação, da presença. Quantas vezes você tentou mudar um mau hábito e não conseguiu? Aquele homem via o inimigo, ele estava combatendo numa guerra, avançando. Ele sabia o que estava fazendo.
“Qual a diferença daquele homem para mim?”, pensei. Eu também estou combatendo meus demônios. Também luto com a preguiça, o medo, a raiva, o desânimo. Eles são como um vício, como uma parte viciosa da minha alma que me testa e que, não importa o quanto eu seja disciplinado, vem me encontrar todos os dias, armada de desculpas, mentiras, etc.
Como aquele homem, eu também estou em guerra. Eu vejo os meus inimigos, luto com eles e, às vezes, venço. Outras vezes, eles ganham. Às vezes luto com pensamentos negativos, outras com o medo ou a ansiedade. Mas todos os dias, eles vêm colocar minhas forças à prova. “Será que você quer mesmo isso?”, “Será que você é capaz?”.
Acredito que todos nós, cada um à sua maneira, estamos em guerra. Numa guerra invisível, íntima. Naquele círculo, os homens falavam aos seus iguais sobre suas batalhas pessoais, se expunham como verdadeiros guerreiros numa arena. Nós não. Passamos pela rua, olhamos os outros e não vemos. Esquecemos que todos estão lutando batalhas. É bom lembrar.
Não sei se você está lutando contra a cocaína ou contra uma família mal caráter. Talvez você esteja combatendo a preguiça que te impede de realizar algo que quer muito ou, talvez, esteja enfrentando o medo do desemprego e da pobreza. A verdade é que o seu inimigo do momento é indiferente. Na guerra, o inimigo só existe para ser derrotado. Seja implacável.
Embora eu não saiba contra o que você está guerreando, sei que é como eu, como aquele homem de cabelos brancos. Não posso ver sua batalha, mas sei como se sente. Você não está só. Mesmo que as ruas cinzas e os rostos inexpressivos não te deixem ver, lembre-se, todos estão lutando guerras invisíveis. São seus irmãos e estão em combate, assim como você.
Às vezes, acho que a vida de um homem é como jogar pedras num lago. As pequenas ondulações na superfície da água vão encontrar, em algum lugar, sua própria razão de existir. Parece pouco, parece pequeno, mas não é. Como poderia ser? A pedrinha que aquele homem lançou no lago, fez vibrar a água que me encontrou. Ele me tocou para sempre.
William Blake disse que “A eternidade está apaixonada pelas criações do tempo”. Como uma pedra lançada num lago, como letras num papel ou um sorriso a um estranho. Como um passo subindo uma montanha. Apenas um passo, e você não está mais no mesmo lugar. Apenas um dia e você pode tocar uma vida para sempre. Lute, meu irmão. Só mais um pouco, só mais uma vez, “só por hoje”.
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