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Mau Entendedor

Atualizado: 6 de ago. de 2021


Às vezes você finge ter entendido algumas coisas só para não parecer desinteligente? Eu faço isso. Só para não ficar aquele clima chato, sabe? Digo “Ah, sim, sim.”, ou “Ah, tá! Entendi.”ou então “Sei, sei…”, mas não faço a menor ideia do que a pessoa está falando. É só uma forma de não ser deselegante e permitir que meu interlocutor continue. Afinal, boa parte das vezes, não vai fazer a menor diferença se eu realmente entendi ou não. A outra pessoa só quer falar mesmo e eu, claro, contribuo para a felicidade dela.

Mas, de uns tempos para cá, tenho achado que sou um mal entendedor até quando finjo. Para mim, definitivamente, pingo não é letra e meia palavra não basta. Até porque, convenhamos, um pingo está mais para ponto do que para letra e numa palavra de duas letras, por exemplo, a metade só basta se você estiver jogando forca. Aliás, também nunca entendi direito esses dois ditados populares. Não fazem nenhum sentido (a não ser, é claro, na música do Jorge Ben: “Mó num pá tropí…”).

E quando digo que sou mau entendedor, quero dizer que depois de realmente buscar assimilar alguma informação e tentar compreende-la, não fez sentido. Não é que eu seja especialmente limitado, mas certas coisas que parecem óbvias e perfeitamente aceitáveis, para mim, não são. Daí é que vem esse meu truque de fingir. Por exemplo, você consegue entender porque é que a gente dá tanta atenção para coisas negativas e deixa as positivas meio de lado? Vou te dar um exemplo.

Lembra do Fábio Assunção? Há algum tempo, minhas timelines e grupos de Whatsapp, especialmente na sexta-feira, ficavam apinhados de memes do tipo “Hoje eu vou mandar o Fábio Assunção” significando: “hoje eu vou exagerar na bebida e passar por situações constrangedoras”. E, claro, logo depois vinha uma enxurrada de “kkk”, “hahaha" e "rsrsrs". As pessoas realmente achavam muito engraçado e simplesmente não cansavam do gracejo. Foram meses de Fábio Assunção na sexta-feira, era quase Globo Repórter.

Pois bem, o tempo passou. O Fábio Assunção parou de beber, está com um físico de atleta e é um exemplo de superação. E desde então, eu nunca mais soube de ninguém postando "Hoje eu vou mandar o Fábio Assunção!", por quê? Será que a gente realmente só gosta do que não presta ou tem prazer em ver a desgraça alheia? Lembramos mais facilmente do mal que nos fizeram do que do bem. Por que será?

Dentre outras tantas coisas que também não entendo estão: uvas passas no arroz, frases do tipo "é preciso ser intolerante com a intolerância" ou, por exemplo, por que a gente, automaticamente, olha para o vaso sanitário após o número 2 (Qual a curiosidade? Afinal, a gente já sabe que está uma m****). Mas, o que tem me desafiado mesmo ultimamente, são os jogos olímpicos. Neste tema em particular, tenho fingido desavergonhadamente porque não está fazendo sentido nenhum.

Por exemplo, não acho que faz sentido uma mulher trans competir com uma mulher (não trans). Mesmo que ambas sejam vistas pela sociedade igualmente como mulheres, o caminho delas até essa condição foi muito diferente. Especialmente do ponto de vista biológico. Se fosse para jogar xadrez, isso não influenciaria em nada. Mas quando a disputa é física, a justiça desaparece. Se você é mais forte do que eu naturalmente, será que estamos mesmo em pé de igualdade de condições numa disputa? E o que me chama atenção é o fato de não termos tantos homens trans competindo.

Sou realmente um entusiasta da diversidade, da inclusão e da quebra de preconceitos. E, sem dúvida, o esporte tem este poder de nivelar a gente e nos colocar em pé de igualdade, não importa se você é bonito ou feio, se é pobre ou rico, se gostam de você ou te odeiam, o que importa é o que você é capaz de fazer, até onde é capaz de se superar. Mas, todo esporte tem uma certa ética que busca algum grau de equilíbrio. Por isso temos as categorias, divisões, etc. E é por isso que os atletas dedicam a vida inteira treinando seus corpos para alcançar aquele milésimo a menos, aquele centímetro a mais.

Quando se quebra essa ética, o que acontece? Podemos liberar o dopping? Mulheres com níveis de testosterona naturalmente elevados não vão mais ser barradas das competições? E não é só essa ética do esporte que tem sido quebrada nas olimpíadas. Duas medalhas de ouro no salto em altura? Não faz sentido. "Eles preferiram não competir e dividir o primeiro lugar. É melhor garantir o ouro duplo do que a prata solitária." Se essa moda pega, nem precisa mais de olimpíadas, é só mandar pelo correio as medalhas de ouro de todo mundo. Não é para competir que existem os jogos?

Veja, querido leitor, talvez você discorde de mim, mas jogo de comadre tem limite. E, nas OLIMPÍADAS, ver um negócio desses dá um aperto no coração, bate um desalento inexprimível. Atletas daquele nível, os campeões da nossa raça, que passaram a vida inteira treinando e competindo por aquele momento. De repente, juntam os dedos mindinhos e dizem "corta aqui"? Por que?

De onde veio esse negócio de não se desafiar? Por que não competir? Imagine se, de repente, a Rússia e os Estados Unidos decidissem fazer um combinado de parar de competir na corrida espacial. "Vamos parar com isso de brigar para ver quem chega primeiro ao espaço, tá bem? Somos "miguxos". Vamos ficar aqui por Iguaba Grande mesmo. Medalha de ouro pra nós dois." Você teria GPS hoje, por exemplo? Se as fabricantes de celulares não competissem, você estaria no "tijorola". Competir não é feio, não é mal, não é chato e não é bobo. É a competição que leva à superação, ao aprimoramento. Por que, de repente, essa aversão à competição? De onde veio essa coisa agora de aplaudir esse tipo de atitude? Não faz sentido.

E também não faz sentido chamar de "bravura", "coragem" ou qualquer coisa parecida a atitude da Simone Biles. Não consigo imaginar como foi a vida dela até aqui. Os treinos, a pressão, etc. Mas, muitos outros atletas antes dela passaram por coisas muito parecidas. E, mesmo em condições adversas, mesmo com o peso do mundo nas costas, competiram, fizeram o seu melhor. Alguns venceram, outros perderam, e pronto. É sobre isso que é o esporte. Entrar, fazer o seu melhor, lidar com seus demônios, ganhar ou perder.

É claro que quando um atleta desse nível diz que atingiu seu limite, deve-se respeitar sua dignidade e suas limitações. Mas, chamar de coragem, bravura ou de qualquer outra coisa que o valha, é corromper o sentido da palavra e desonrar o exemplo de outras pessoas, não só atletas, que continuam apesar dos pesares, não desistem e dão o melhor que têm a despeito do resultado. Então, não faz sentido enaltecer um negócio desses. A não ser, é claro, que a gente realmente valorize o que há de negativo.

Nesse caso, com efeito, ou nos apropriaremos desses valores desnorteados e sem sentido, ou só teremos uma nova enxurrada de memes e situações curiosas. Afinal, fazemos piada das desgraças e relegamos os casos de superação ao anonimato. O Fabio Assunção está meio sumido mas, de repente, "Não vou nem tentar" pode virar meme assíduo nas timelines e grupos de Whatsapp, transliterado para "Vou fazer a Simone Biles", seguido de uma enxurrada de "kkk", "hahaha" e "rsrsrs".


 
 
 

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