O Gigante Disfarçado
- rannison rodrigues
- 6 de jun. de 2021
- 6 min de leitura

Soube da existência do Marcos (vou chama-lo assim) por meio dos comentários femininos. "É aquele ali, oh!", apontou a recrutadora que o tinha convidado para o processo seletivo, e todo o pequeno contingente de moças perto de mim se mobilizou para olha-lo detidamente. Logo depois, vieram uns risinhos, uns "Nossa!" e a recrutadora foi busca-lo para a entrevista andando como quem, por alguns instantes, é elevada da categoria de mera mortal, só por estar acompanhada dele.
As moças ficavam assim com o Marcos. Bastava olhar alguns segundos e pronto! "Nossa!", risinhos, olhares cobiçosos. E tinham bons motivos para isso, é claro. Pense em um cara com jeito de galã: 1,90m e poucos, bonitão, modos gentis, sempre bem arrumado, trajando todos os ornamentos da última moda, e todos os etc. que puder imaginar. O Marcos era a definição ambulante de "Homão da Porra". Um "Nossa!" com pernas.
Viajado, filho de uma família rica e recém-chegado de um ano sabático; pelo que soube na época; foi admitido na área de marketing por indicação de uma amiga que trabalhava na mesma área. Mas não antes de passar por um processo seletivo bastante difícil. Logo nos primeiros dias do Marcos na empresa, cruzei com ele na porta. Eu saindo, ele entrando acompanhado de uma moça. Todo educado, me deu a vez, dizendo: "Você primeiro, por favor."
Não deu match! Pensei na hora que tinha alguma coisa errada naquele gesto, algo não estava encaixando. Foi gentil, verdade. Mas, não foi genuíno. O fato é que, por acaso, ele trabalhava na mesma área que a minha namorada à época. E, tempos depois, quando já tínhamos saído da empresa, soube, por meio dela, que o Marcos tinha sido demitido. "Ele foi demitido por comportamento machista…" ela disse. Não acreditei.
Aquele cara gentil? Não fazia sentido nenhum. Quando ela me contou uma das versões da história, fiquei intrigado e incomodado ao mesmo tempo. "Ele está procurando emprego, você poderia ajudar com algumas dicas de entrevista." sugeriu ela. "Não sei, não", respondi eu. Mas dias depois, estava sentado à mesa de um café com o Marcos. Olho no olho, ele não me pareceu um babaca machista. E realmente não era.
Mas, logo que começamos a conversa, o Marcos; que sempre levava consigo um tablet para anotar o que falávamos; foi de uma sinceridade tão brutal que passei a simpatizar com ele quase instantaneamente. Tinha olhado seu currículo antes da nossa conversa. Ótima formação, alguns idiomas, passagem por empresas renomadas do mercado financeiro, mas sempre passagens curtas.
"Por que você fica tão pouco tempo nas empresas?" perguntei. Ele me contou as histórias de cada uma. Eram diferentes, mas o motivo era o mesmo. "E por que você foi trabalhar no mercado financeiro se não gosta do trabalho?", e a resposta veio assim "Pelo dinheiro, status e poder". Nada de firula, nada de conversinha fiada. Ele estava deprimido com a saída da última empresa, sentia-se injustiçado, mas, toda vez que falava do acontecido, não conseguia externar a raiva. Marcos tinha medo de ser impertinente ao ser quem era.
Fui sincero com ele "Cara, eu posso te ajudar a arranjar outro emprego. Mas pelo que a gente tá conversando aqui, aposto que você não vai durar nem 1 ano nele. Você não precisa de um emprego, você precisa saber quem é". Depois de algumas perguntas, sugeri a ele que fosse para casa e pensasse, mas que, se quisesse mesmo tentar, começaríamos na próxima sexta-feira. Ele topou. Foram algumas conversas de sexta-feira as 7:00 da manhã.
Toda vez que a gente conversava, o Marcos me assustava com a capacidade de assimilação e de transformar o que falávamos em alguma coisa palpável. E veja, ele não acreditava apenas no que eu falava. Pesquisava, lia, procurava, contestava, colocava em prática. Aí sim, ele assimilava e mudava. Pense numa pessoa extremamente inteligente e que é capaz de ir ao mínimo detalhe, o Marcos é assim. Ele quer chegar ao átomo das coisas.
Além de "Homão da Porra", ele é paraquedista dos bons, escalador avançado e especialista em coisas como café, por exemplo. É surpreendente o grau de profundidade que alcança em tão pouco tempo. Mas, o Marcos abandonava todo esse poder de ação para não ser "mau". Deixava as pessoas falarem o que quisessem com ele e sempre reagia com gentileza, mesmo que fosse uma gentileza forçada. Ele vivia para agradar, para ser aceito, para não fazer mal aos outros. Contudo, é claro, fazia muito mal a si mesmo no processo.
Tinha pensado em suicídio algumas vezes, me confidenciou, e purgava a dor que sentia com tatuagens. Além disso, questões familiares, principalmente com o pai, faziam muito mal a ele, e a relação com o irmão era difícil. Imagine que você se programou para atingir o que a sociedade diz ser o modelo de felicidade. O irmão do Marcos era assim. São gêmeos. Logo, o Marcos 2, é um "Homão da Porra" também, mas, com algumas diferenças: foi muito bem sucedido na carreira, abriu a própria empresa e não se importa de falar o que quer. Como fiquei sabendo, na verdade, ele era o principal ponto de partida para o Marcos.
"Meu irmão faz isso e isso comigo…" me contou um dia. "Ué, mas e porque você deixa?" perguntei. "Ah, sei lá, meu. Ele é meio babaca assim mesmo." replicou. "Da próxima vez, você vai defender o seu espaço, cara. Coloca ele no lugar dele, ou vai sempre te tratar assim". Senti uma certa ansiedade no Marcos, mas o fato é que ele fez e funcionou. E, a partir daí, as semanas seguintes seriam espantosas.
Começou a traçar os planos para o próprio negócio, cortou algumas amizades tóxicas, parou de comer tanta porcaria, regulou o sono, voltou a escalar. Entre evoluções e recaídas, toda vez que conversávamos, vinha com alguma coisa que me surpreendia. Às vezes, eu achava que não era mesmo ele do outro lado da linha. A autoconfiança que desenvolveu em curto espaço de tempo, era simplesmente impressionante.
Tentou abrir o negócio, mudou de ideia, tentou outras coisas. Se meteu no meio do mato em Minas Gerais, foi conhecer as realidades de gente menos afortunada que ele. Foi criticado constantemente, ignorou às vezes, sofreu às vezes, falhou às vezes, mas não desistiu e seguiu o que considerava importante. Parou de querer tanto impressionar os outros, desapegou-se dos padrões que tinha sobre sucesso e valor pessoal. Enfim, Marcos se transformou muito e me inspirou, me ensinou também.
Perceba, ele poderia ter desistido a qualquer momento. Bastava não continuar, bastava voltar ao que ele já tinha. Seria bem mais conveniente. Tudo ao seu redor o convidava a isso: pensar como antes, agir como antes, viver como antes. Mas, ele pegou o longo caminho curto e decidiu enfrentar seus próprios demônios. E fez isso de maneira notável.
Em uma das primeiras conversas que tive com o Marcos, pedi a ele para pensar em qual era o seu sonho, o que ele gostaria de realizar antes de morrer. A resposta: "Quero que o Tim Ferris, fale sobre mim um dia!" Com a orientação que tinha na época, sempre esperando o reconhecimento externo, não era de surpreender. Mas, hoje, passado algum tempo, decidi unir meu amor pelo "contar histórias" e o meu desejo de reconhecer um ser humano realmente digno de nota. Se você estiver lendo isso, mestre, ainda não é o Tim Ferris, mas para mim, você é foda. Obrigado pela sua amizade.
Antes de terminar, quero ser sincero. Nem sempre pensei assim. Quando fui encontrar o Marcos naquele café, já tinha o preconceito de que ele era um cara estúpido e machista. Mas, não é. Eu estava errado. A forma como as coisas nos são apresentadas, como as histórias são contadas, nem sempre é imparcial, justa ou clara. Acho que o Marcos foi realmente injustiçado, mas acho também que foi a melhor coisa que poderia ter acontecido a ele. E explico.
Todo esse desejo de ser reconhecido, todo esse esforço para ser querido era, na minha opinião, o efeito de uma causa. A causa, suponho, é essa capacidade impressionante de se dedicar às coisas. Isso, acho, é um dom. O Marcos tem isso. Mas, se dedicou a uma personagem, a ser "bonzinho" e pagou o preço. Seu dom, mal aplicado, torturava a essência de quem ele realmente. Um gigante não pode se fingir de anão e esperar ser feliz. Dói, machuca, é uma tortura.
E descobri que o Marcos era isso: um gigante disfarçado, tentando se apequenar para não assustar ninguém, para fazer parte, para ser aceito. Queria ser valorizado fora, sem se valorizar dentro. Fórmula infalível para a infelicidade, curto caminho longo para o sofrimento. E sei que ele não era o único vivendo uma personagem. Às vezes é mais fácil aceitar, fingir, disfarçar, "empurrar com a barriga".
Torna-se um vício. De repente, o papel que criamos toma as rédeas da vida e vai formando opiniões, hábitos, aspirações que não são nossas. E, depois de um tempo, é extremamente difícil se libertar, porque já nem lembramos mais quem nós somos. Mas, se um pôde, então outros também podem. Você pode. O Marcos é a prova viva de que é possível, "basta ser sincero e desejar profundo". Livrar-se de qualquer vício é uma decisão diária. Que tal tentar? Só um pouco, só o melhor que puder, só por hoje.
Que história 👏🏻👏🏻👏🏻