O Patinho Feio
- rannison rodrigues
- 3 de jun. de 2021
- 7 min de leitura
Atualizado: 15 de jun. de 2021

Meu pai é um dos seres humanos mais inteligentes que conheço. Imagine qualquer problema, ele resolve. Se for de matemática, então, é com ele mesmo. Outro fato interessante sobre ele é que já trabalhou de um monte de coisas: garçom, porteiro, vendedor, padeiro, dono de comércio. Até como salineiro, puxando sal debaixo do sol escaldante, ele já trabalhou. Hoje, ainda na ativa, trabalha como eletrotécnico.
Durante muito tempo, discordamos muito. Na verdade, discordamos de quase tudo. Eu não entendia meu pai. Fui injusto com eles muitas vezes. Me ressentia porque não via o que ele via. Talvez uma das principais discordâncias fosse o tema educação. Meu pai tinha estudado até a sexta-série quando eu estava terminando o ensino-médio. Tinha 16 anos e estava ansioso para entrar na faculdade. Mas, meu pai não achava uma boa ideia. Na verdade, ele era contra.
Com 16 anos de idade, arrogante e imaturo, a gente se ressente de ouvir certas coisas. A gente se sente pequeno, sabe? E essa coisa de o meu pai dizer "isso não é para você" já me acompanhava desde os 5 ou 6 anos de idade. Eu não podia nada, pensava comigo mesmo. Tudo me era vedado, tudo eu não conseguia. Aquilo me fazia um mal danado. Então com 17, e já me achando crescidinho, decidi desafiar isso. Lutei o quanto pude para entrar numa faculdade e consegui, com a ajuda da minha mãe.
Eu ainda não sabia, mas aquilo deflagraria uma série de situações familiares desagradáveis. Minha mãe ficou animada e decidiu voltar a estudar para concluir o ensino médio. Coisa que meu pai também desaprovava. Foram muitas discussões em casa, várias. E eu estava estudando numa faculdade que, por mais barata que fosse, era paga. Consegui ajuda de uma tia, comecei a fazer estágio, mas a minha mãe ainda precisava pegar um pouco do que tinha para completar a mensalidade.
Essa vaquinha seria natural, é claro. Mas, o fato é que, naquela época, meu pai estava desempregado, tínhamos muito pouco. E aquele dinheiro que minha mãe ganhava como empregada doméstica, fazia realmente muita falta. Chegamos a ficar alguns dias sem comida nessa fase. Lembro como se fosse hoje, de chegar em casa tarde, depois da aula, e minha mãe vir me perguntar se eu estava com fome. Eu estava, sim. Mas sabia que ela também e se dissesse que estava faminto, só faria ela se sentir mal porque não tinha comida nenhuma. Então respondi: "Não mãe, comi no Clayton hoje." Abri a geladeira, bebi água, tomei banho e fui dormir. Mas, só lembro tão bem disso porque tinha sido dia de pagar a faculdade.
Dei razão ao meu pai naquele dia, e me culpei durante algum tempo por ter que impor aquilo à minha família por um "capricho" meu. Meu pai queria que eu fizesse um curso técnico, arranjasse um emprego e um salário. Meu coração dizia outra coisa. Eu queria mais, queria ver o mundo, queria me pôr a prova, queria ajudar as pessoas. E, de alguma forma, sentia que a faculdade tinha a ver com isso. Discutimos muitas vezes ainda em casa por causa do colégio da minha mãe, da minha faculdade, da bobagem que era estudar. Cheguei a trancar a faculdade por um tempo, por desgosto.
Mas aí, arranjei um emprego, terminei a faculdade, fui sendo promovido, as coisas foram melhorando. Compramos a casa da minha mãe e, de repente, fui surpreendido por uma mensagem: "Seu pai voltou a estudar, filho." E ele tinha voltado mesmo. Quando terminou o ensino médio decidiu se dedicar a tudo que tivesse a ver com eletricidade e, olha, o cara é realmente bom. Um craque. E aí, depois de ver o que ele consegue fazer, me perguntei: "Por que não fez isso antes?"
A gente costuma pensar em quem são nossos pais pelo que são hoje, mas, dificilmente para para analisar como eles se tornaram o que são. Seu Francisco, meu pai, também conhecido como Chicão, teve uma infância árida. Era muito míope, usava óculos "fundo de garrafa" super grossos e nunca foi o padrão estético. Era chamado de feio constantemente, dentro e fora de casa e passou por diversas situações de bullying. Durante a infância e a adolescência, sofreu muito com isso.
Mas se não podia se destacar num concurso de beleza, era formidável em outras áreas. Meu pai foi soldado da elite do exército no seu tempo, chegou a fazer parte da escolta do presidente Figueiredo e desenvolveu uma aptidão atlética de fazer inveja a muita gente. Para você ter ideia, com mais de 50 anos de idade, ele treinou menos de duas semanas para fazer uma meia maratona e terminou a prova em pouco mais de duas horas. E se sentindo muito bem…
Só que meu pai não via isso, não via suas fortalezas. Tinham muitos fantasmas, muitas vozes dizendo que ele não era adequado, que não era bom do jeito que era, só por causa da sua aparência. E quando começou a namorar, fisgou logo a minha mãe que era (e ainda é) linda de morrer. Após ouvir muitas vezes que não deveria seguir porque ela era muita areia para o caminhãozinho dele, meu pai decidiu ouvir o amor, ignorar o ódio e casar com a minha mãe.
Antes do casamento, porém, foi obrigado a ouvir algumas coisas bem rudes, até mesmo da minha avó materna. Coisas como "esse preto feio", por exemplo. Meu pai cortou um dobrado. Mas, felizmente, ele continuou. Afinal, sem isso, talvez eu nem estivesse por aqui. O caminho de ofensas e de ataques à autoestima e à autoconfiança do meu pai não terminaria aí. Mudou-se para o Rio de Janeiro com a minha mãe quando eu tinha 2 anos, queria melhores oportunidades para a família e o que recebeu, contudo, foi mais discriminação: "Paraíba", "Cabeçudo", etc.
Mulato, ensino fundamental incompleto, pobre, nordestino. Meu pai era o rótulo do "coitado" e ainda havia toda aquela história anterior de Bullying pesando sobre ele. Como você lidaria com isso? Com um filho pequeno para ensinar a ser homem, com tantas dúvidas e dificuldades ao mesmo tempo. Meu pai optou pela segurança. "Isso não é para você, meu filho" e eu sempre perguntava "Mas, porque pai?" e ele sempre respondia "Porque você é filho do zelador" ou "Isso aí não é coisa para gente, não."
Lembro de um dia que recebi um monte de figurinhas de um álbum de colecionáveis dos Cavaleiros do Zodíaco. Como não podíamos comprar muitas, sabia que ia demorar para completar o álbum e comentei com um coleguinha. Ele prontamente, me levou até a sua casa e me deu um generoso monte de figurinhas repetidas. Eu estava em êxtase. Saí do prédio correndo em direção à minha casa, mas no caminho, lembrei "isso não é para você". Parei, atormentado: queria as figurinhas, mas não podia tê-las. Se chegasse com elas em casa, talvez tivesse problemas, aquilo não era para mim. Esperei alguém passar (todo mundo tinha aquele bendito álbum na época) e dei minhas figurinhas.
Fui para casa, botei o álbum de lado, e parei de tentar completa-lo. Acho que tinha uns 8 ou 9 anos nessa época. Já tinha assimilado a política do meu pai: era melhor não tentar, do que se expor ao sofrimento. Mas, os meninos crescem. E não são só os pais que ensinam os filhos. Os filhos também podem ser professores dos pais. Eu cresci com uma coisa dentro de mim que queria desafiar, avançar, conquistar. Queria me atrever.
E logo que pude, comecei a tentar fazer tudo aquilo que diziam ser difícil, impossível, tudo aquilo que "não era para mim". Queria ser o melhor que pudesse no que estivesse fazendo: rugby, trabalho, triatlo. Quando fiz o Ironman, lembro de voltar para Cabo Frio, onde meus pais moram, e ver o rosto do meu pai. Ele estava radiante, olhava para mim como se eu fosse uma entidade e não conseguia parar de sorrir.
Ao longo da minha preparação, ele tinha feito algumas corridas, passou a se alimentando melhor, e queria fazer uma meia maratona em breve (o que, de fato, fez). Uma tarde, minha mãe, conversando comigo na varanda, me confidenciou "Teu pai agora não para de falar, para todo mundo, que você é Ironman. Parou de comer bobagem, diminuiu a cerveja, tá correndo quase todo dia. Quer se igual a você." Fiquei pasmo!
Alguém queria ser igual a mim? E logo o meu pai? Eu tinha 31 anos na época, mas não tinha percebido que: (i) ainda duvidava do meu próprio valor e (ii) meu pai se orgulhava de mim. Acho que pensava que aquilo também não era para mim. Mas aprendi, ali mesmo, que algumas feridas levam tempo pra curar e que, às vezes, o antídoto vem do próprio veneno. O garotinho medroso tinha virado um moleque atrevido, e o homem que me tornei fez meu pai acreditar que sim "isso é para você também", "se eu consegui, você também consegue". Fiquei feliz.
Durante muito tempo, tive ressentimento do meu pai. Achei que ele não acreditava em mim. Nada disso, ele queria me proteger. Nós todos falamos da vida da forma como a vemos. Era isso que ele estava fazendo. Meu pai, o patinho feio, não tinha entendido que, ser cisne entre patos pode ser dolorido. E como é lindo meu pai, por dentro e por fora, solidário, amoroso, sempre pensando nos outros, um baita sorrisão caloroso. Não sei se você está lendo isso, meu velho. Mas, me desculpa por não ter sido um filho melhor, eu estava aprendendo.
Meu filho, o David, nasceu em Janeiro desse ano. Seu Chico, agora também conhecido como vovô, se derreteu, chorou e, claro, mandou uma roupinha do mengão para o neto. David, eu sei, vai ter seus desafios e eu, como pai, é claro, terei os meus. Mas, não importa o que aconteça, espero estar perto dele o máximo possível, e faze-lo acreditar que ele consegue, que é possível.
Eu não sei a sua história e nem se conheceu o seu pai (minha mãe não conheceu o dela). Talvez você seja pai. Mas, se chegou até aqui e me permite um conselho: se precisar, perdoe e peça perdão pra ele. Vocês podem ter errado um bocado, mas é que todo mundo tem as suas feridas mesmo. E, mais que isso, ame seu pai agora, com o que tiver, o melhor que puder. A gente não sabe até quando eles vão estar por aqui. Talvez, seu pai, como o meu, seja só um cisne achando que é um patinho feio.
Seus textos são ótimos!
Que história, que superação. Emocionante.