Opiniões de Prateleira
- rannison rodrigues
- 15 de nov. de 2021
- 6 min de leitura

Como você vê o mundo? Será que está vendo as coisas pelo que são ou só está vendo uma miragem? Essa pergunta me surgiu prestando atenção a uma conversa num restaurante. Enquanto esperava a comida, minha atenção foi para um diálogo na mesa ao lado. “Ai, mas é um absurdo as mulheres terem que cobrir a cabeça e o rosto. Coisa retrógrada.” dizia um dos participantes.
O outro, mais ocupado com a comida, fazia alguns sons bovinos enquanto ouvia e mastigava. Entre uma garfada e outra, encontrou ânimo para dizer: "Esses caras pararam no tempo. Não acompanharam o pensamento moderno, estão fora da realidade." E aí uma pulga se mudou para atrás da minha orelha: "Qual realidade?" Minha comida chegou, estava ótima e não consegui mais prestar atenção aos meus vizinhos de mesa. Comi absorto em minhas perguntas e, logo depois, paguei e fui-me embora.
Claro, ficar ouvindo a conversa alheia não é educado. Mas, num tempo em que as pessoas praticamente imploram por atenção, não me pareceu de todo mau. Além disso, estavam conversando em voz alta. Pareciam querer generosamente oferecer sabedoria aos presentes. Mas aquele trecho de conversa me deixou realmente curioso. Não seria arrogância dizer o que é certo ou errado para os outros sem lidar com a realidade deles?
Veja só, se em alguns lugares as mulheres cobrem o rosto e em outros se despem quase completamente, o que determina quem está mais certo ou mais errado? Achei isso impossível de determinar. E achei também que é bobagem criticar um costume que não conheço. E - verdade seja dita - objetivamente, não consegui entender o que há de tão demoníaco em cobrir o rosto. Desde a COVID andamos todos por aí com rostos cobertos. Sobrevivemos. Então, qual a heresia nisso?
A gente vai vendo o mundo como o que nos apresentaram e, de repente, acha que tudo tem que se encaixar naquele molde, inclusive, o mundo dos outros. E não digo isso apenas pensando na conversa dos meus tonitruantes companheiros do restaurante. Digo pensando em mim mesmo. Você também é assim?
Acho que a história humana nos prova que certas ideias precisam ser tomadas com bastante cuidado. Especialmente aquelas que nos autorizam a julgar outras culturas como superiores ou inferiores à nossa. Há não muito tempo atrás, uma mulher ocidental usava uma enorme quantidade de roupas. Cobrindo-se praticamente inteira da cabeça aos pés. Com o tempo, os modelitos mudaram. Então, será que podemos mesmo julgar uma cultura se ela decidiu manter o que fazia ao invés de mudar?
E se você preserva, conserva e não avança, como pode retrogradar? Uma cultura que cultiva certos costumes não pode ser retrógrada. Não voltou a lugar nenhum, só se manteve onde estava. Estáticos, então? Será? No mundo em que gente vive dá para imaginar que preservar certos traços culturais é ser estático? Acho que, muito pelo contrário, deve dar um trabalho danado.
Falamos muito de ressignificar experiências, desconstruir isso e aquilo. Que tal ressignificar a importância da nossa própria opinião? Ela pode nos ser assegurada por lei, mas nem sempre vale muita coisa. Principalmente quando qualquer um sente-se no direito de opinar sobre tudo. É uma espécie de presunção ingênua que se apoderou do nosso momento histórico: acreditar que realmente temos opinião sobre qualquer coisa.
E não é só isso, de uns tempos para cá, nos acostumamos a "cagar regra" sobre tudo. Temos prateleiras cheias de opiniões prontas, por isso, fica bem fácil. Alguém ouve, ou recebe no Whatsapp, ou vê no google, ou no facebook e nem precisa ler a postagem para já ter uma opinião definitiva. Não há cristo que mostre que pode ser diferente, que talvez não seja bem assim. Depois de 14 segundos de profunda reflexão, tá decidido, opinião pronta.
E se discordarem da "opinião" que, obviamente, está completamente correta e expressa a verdade última, basta: (i) dar um título: "Retrógrado", "Facista", "Gado", "Esquerdopata", "Minion", "Feminazi"; (ii) adicionar defeitos: tóxico, imbecil, acéfalo, etc. e (iii) concluir o combo de opinião fast-food com um bordão, tipo "não passarão". Aliás, sempre tentei dar crédito à frase "não passarão". Ela quer denotar uma ação combativa, eu sei. Mas para mim, sempre pareceu sinônimo de estagnação, quase uma areia movediça.
Combos opinativos em mãos, lá vamos nós, vestir a bandeira do Brasil para acusar outros brasileiros. Ou então, algum modelito vermelho. O importante é se distinguir do outro "time" e escolher um lado. Amarelos e vermelhos, tão diferentes, mas igualmente empedernidos. Inelutavelmente comprometidos com opiniões de prateleira, alheios à verdade substancial. Tão iguais na intolerância, na cagação de regra, na areia movediça de argumentos irrefletidos. Não faz sentido nenhum.
Não é só no campo da religião, política ou futebol, que mantemos essas paixões alienantes. Na nossa visão de mundo mais pessoal, isso também é verdade. Conheci há alguns anos uma moça que me confessou durante uma conversa ébria: "Eu amava aquele homem, de um jeito que eu nunca amei ninguém. Mas não dava para ficar com ele. Era pobre, feio e queria ser professor. Minha família nunca ia aceitar."
Ela me contou isso chorando. Sinceramente ferida por não dar uma chance ao relacionamento. Mas, o mais importante, a família dela não estava mais feliz porque ela apresentou pretendentes alinhados às expectativas. Continuavam sendo conflituosos e problemáticos como sempre, segundo me disse. Ela sim, estava mais infeliz. Talvez atormentada por não ter a coragem de ousar viver o amor segundo sua própria opinião, talvez por sofrer com a impotência da prisão onde as ideias de sua família a colocaram. Mas o fato é que opiniões de prateleira fazem vítimas todos os dias.
Todos têm direito a uma visão de mundo. E seja lá qual for, ela é necessária para nos dar alguma orientação. Mas parece também que é preciso ter cuidado com as prisões em que elas nos colocam, com as respostas e os caminhos fáceis, com os pensamentos prontos e com a covardia de não pensar com nossa própria cabeça, esteja ela coberta ou não.
Isso porque é fácil achar aceitável um homem mudar de sexo e atacar a circuncisão. Porque é fácil defender o empoderamento feminino sem perceber que, às vezes, ele conduz exatamente aonde o machista mais chauvinista gostaria de ver uma mulher. É fácil aplaudir o óbvio, o aparente, o raso. As respostas já estão prontas, as ideias estão nas prateleiras. Escolha a sua, se isso te satisfaz.
Mas, se bater curiosidade, se uma pulga estiver aí atrás da sua orelha te incomodando, observe um pouco mais. Julgue pela substância. "Como assim?" Imagine dois remadores num barco: se cada um rema para um lado, não importa se estão de frente, de costas ou de lado um para o outro. O barco não sairá do lugar. Quanto mais força fizerem, menos vão progredir. Então, entenda que a posição aparente do outro tem valor relativo, o que importa é o que ele faz naquela posição.
Você pode se apegar às ideias e às teorias da moda. Mas, se não viver de verdade, se não discernir por si só, vai ser mais um alienado, fechado no próprio mundo de prateleiras, preso nas limitações que criaram para você, julgando o que não conhece, distribuindo sabedoria que não tem, vivendo segundo os desígnios de gente que, muitas vezes, não conhece e nunca vai conhecer.
Apesar disso, não se preocupe. A verdade sempre se impõe. Mesmo com as fake news, mesmo com todo esse arsenal de desinformação e alienação. Ainda assim, ela sempre se impõe. Mesmo que passe muito tempo, mesmo que muito dano seja feito até chegar a hora, a verdade sempre aparece. E para ela, sua opinião não importa e nem se você gosta ou não. Ela é o que é.
Seu amor pelo pretendente "errado" vai te procurar e te cobrar verdade. Sua vocação vai te incomodar, querendo verdade. E só tem dois jeitos de satisfazer a cobrança: dor ou coragem. E não adianta recorrer às prateleiras, você vai precisar viver, agir por si mesmo, com as suas próprias ideias. Kant diria “Sapere Aude”, em tradução livre, ouse conhecer. "Vai viver, criatura!" diriam algumas amigas minhas.
Então, que tal largar suas prateleiras de ideias prontas e ir viver? É fácil cagar regra sobre tudo e criticar os outros, mas o que você realmente sabe? Você é coerente com quem é ou é só um personagem de prateleira? Quem é você? Atreva-se a saber, a apanhar um bocado da vida, viver a experiência e realmente compreender. Você vai ver como criticar os outros fica sem graça, viver é muito mais interessante e ajuda a gente a ressignificar a importância das próprias opiniões. Nada de prateleiras, nada de fantasias, apenas vida, apenas humanidade. Talvez este pensamento do grande Amir Klink ajude a ilustrar o conceito.
"Um homem precisa viajar. Por sua conta, não por meio de histórias, imagens, livros ou TV. Precisa viajar por si, com seus olhos e pés, para entender o que é seu. Para um dia plantar as suas próprias árvores e dar-lhes valor. Conhecer o frio para desfrutar o calor. E o oposto. Sentir a distância e o desabrigo para estar bem sob o próprio teto. Um homem precisa viajar para lugares que não conhece para quebrar essa arrogância que nos faz ver o mundo como o imaginamos, e não simplesmente como é ou pode ser. Que nos faz professores e doutores do que não vimos, quando deveríamos ser alunos, e simplesmente ir ver." (Amir Klink)
Não importa a distância da sua viagem, ela começa com o primeiro passo. Arrisque, vá viver! Sapere Aude. Boa semana!
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