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Querido Noel

"Querido Noel, sei que tem muito tempo que não faço contato. Há pelo menos 30 anos não levo fé em você e acho que é o maior responsável por arrebentar como espírito do natal. As pessoas acham que a data tem a ver com os presentes que vão receber e se concentram nisso. Eu e você sabemos que não é esse o objetivo. No entanto, essa eu coloco na sua conta, meu velho. Ficamos mal acostumados. Não vou te chamar de papai porque já tenho um e, claro, depois de me tornar pai também, meu conceito de paternidade é muito diferente de aparecer uma vez por ano no meio da noite, largar uns presentes e desaparecer até o próximo natal. Então, vai ficar só Noel mesmo e, por favor, não se ofenda. Não te escrevo só para ser desaforado. Não, há outro motivo para isso. Quando eu, ainda criança, escrevia para você, queria ganhar presentes. Lembra daquele ano em que eu te pedi uma bicicleta e você trouxe um par de meias? Confesso Noel, fiquei puto. Fui bonzinho na frente dos outros e disse que gostei das meias. Mas assim que pude, sozinho, chorei de decepção e me perguntei onde eu tinha sido mal para ganhar aquele par de meias escroto. Mas hoje, eu quero te agradecer. Sim, 30 anos depois, eu entendi. Então, obrigado, velho! Aquele par de meias me ensinou muito. Hoje pensando nos natais passados, vejo que recebi demais e que o valor das coisas da vida está no seu significado, não no preço. Recebi tanto. Eu não queria a bicicleta pelo preço, mas eu entendi que aquele par de meias era tudo que você tinha para me dar. Que foi o seu melhor. E que quando se tem pouco, mas se dá tudo, o valor é muito maior do que quando se tem tudo e se dá só um pouco. Obrigado, velho. Esse ano eu recebi demais. O David, a Summit e tantas outras coisas maravilhosas. Recebi apoio, amor, sorte, maturidade. Tanto que eu não consigo pensar em nada para pedir. Foram tempos muito difíceis e diferentes do que eu tinha planejado. Nos meus planos, hoje eu estaria com o David, uma árvore de natal gigante na sala e a gente estaria brincando e fazendo bagunça pela casa. Mas isso, seria ganhar de presente uma bicicleta. A vida achou de me trazer um par de meias. E eu não poderia ser mais grato. Então, Noel. Como eu não consigo em pensar em nada para pedir para mim, quero te falar do que pensei para esse natal. E se ao invés de presentes-coisas a gente mandasse sinais de amor? Sim, um cartão para um desconhecido, por exemplo. Já faz tempo que as pessoas estão trancadas em casa, seu sei. Mas, a gente pode deixar o cartão por debaixo da porta. Sem assinatura mesmo, só dizendo: "Eu vejo você. Feliz natal!" Ou então, se a gente fizesse, por exemplo, um amigo oculto de abraços? Tipo colocar uma máscara e sair por aí, anônimo, abraçando aquele vizinho que não dá bom dia? Não? E você acha que seria possível fazer uma mensagem bonita para as pessoas que perderam entes queridos esse ano? Pode até ser um vídeo. Só para lembrar a eles que ainda estão aqui e que podem ser felizes e aproveitar suas vidas. Será que dá para trocar um monte de quinquilharia por um bocado de comida para esse tanto de gente precisa, Noel? Podemos fazer um crowdfunding de comida. Você já tem a logística. Que tal? E se a gente fizer festas, no mundo inteiro, para todos os tristes? Todas as pessoas com depressão, que se sentem sós no mundo, que não encontram um motivo para ter esperança. Mas, nada de comilança e nem música alta, meu velho. O ingresso custa um sorriso e lá dentro a diversão é fazer algo por um estranho. Uma doação: de tempo, de afeto, de histórias. Você consegue imaginar aquele monte de gente que nem se conhece ficando feliz por ver a felicidade no outro? Seria genial. Será que a gente encontra um jeito, Noel? Será que a gente consegue mostrar para as pessoas que um presente é legal, mas que é mais legal ainda fazer o bem para o outro? Será que a gente consegue mostrar que as coisas que a gente tem nos fazem felizes por um tempo curto demais? Nem que seja só no natal. Acho que se conseguirmos, em breve, estaremos mal acostumados com esse negócio de pensar no bem do próximo. Por que você não testa? Tipo um teste A/B. Eu sei que sou muito jovem comparado a você. E que talvez já tenha experimentado algo parecido. Mas é que não consegui resistir e precisei te escrever essa carta. Precisamos tentar algo diferente, Noel. Olhe em volta: temos tanto dinheiro, mas somos tão pobres. Temos tanta comida e nunca estivemos tão famintos de razões para viver. Temos tanto conforto e somos torturados por um vazio que nada preenche. Como é possível? Da última vez que te escrevi queria um presente para mim. Dessa vez, quero pedir presente para os outros. Essas pessoas que eu nem conheço, nunca vi os rostos e nem ouvi as vozes. Não sei se elas vão querer, se vão gostar ou se vão achar que é um par de meias. Mas, mesmo que demore 30 anos, como aconteceu comigo, eu guardo a esperança de que um dia elas entendam, como eu entendi. Um par de meias é muito valioso. Você pode calça-lo e proteger os seus pés para a caminhada. E a vida é isso, só isso: um caminho sem chegada. Uma bicicleta pode enferrujar, furar os pneus, ser roubada. Mas a experiência de colocar os pés no chão, sentir o mundo debaixo de nós, seguir mesmo depois que as pernas cansaram e continuar; isso sim; nos torna mais nós mesmos. Mais humanos. Esse ano, pensei em te deixar um par de meias de presente. Mas lembrei que em muitos países, não sei porque, penduram meias na lareira e talvez você não entendesse. Então, te deixei uma carta na árvore de natal. Obrigado pelo par de meias. Obrigado por tudo. Deve ser bem difícil ser você. Eu vejo você. Feliz natal, velho!"

 
 
 

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