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Radar Quebrado

Como confiar? De repente, acho, essa se tornou a pergunta de um trilhão de dólares. Como acreditar nos dias de hoje? Nas pessoas, nas notícias, nos nossos próprios pensamentos e opiniões? Somos conduzidos, manipulados, ludibriados, o tempo inteiro. É melhor ser completamente cético ou abraçar a ignorância?

Nosso radar está quebrado. Não sabemos distinguir verdades de mentiras. E acho que até gostamos disso. Há algum tempo ouvi Denzel Washington dizer “Se não ler as notícias, está desinformado. Se ler, está mal informado.” Concordo. Você encontra substância no que ouve, lê e vê ao seu redor? Não te parece antes uma sucessão de vendas e um monte de egos querendo afagos? Tanto por tão pouco.

Essa semana, por acaso, pensei bastante nisso. Acompanhar parte das “discussões diplomáticas” me deu calafrios e a impressão de que temos uma competição onde quem “lacrar” mais, ganha. Um monte de xingamentos, acusações e estórias onde o outro é “malvado”. Me lembrou muito a quarta-série. “A Rússia foi cancelada.” ouvi alguém dizer no elevador. “Isso é um país ou uma reserva de hotel?” pensei comigo mesmo.

Mas, veja bem, não se trata da oposição, do afastamento. Trata-se do pensamento subjacente. “ Fulano foi cancelado”, “A Rússia foi cancelada”, “Não sei o que foi cancelado.” Tão simples quanto clicar num botão e desistir de um download. Por que ninguém está assustado e se perguntando “Como é que pode isso?” Achamos fácil e até natural depauperar um país, destruir reputações. Apenas clique “Cancelar”. Mas isso é normal mesmo? Porque para mim parece uma versão high-tech da justiça da turba.

Se uma grande quantidade de pessoas achar justo, reputações podem ser destruídas, assim, sem muito esforço e nem porque. Sem um julgamento apropriado como prevê a lei e até mesmo antes de a justiça deliberar sobre o fato. Em maior ou menor grau, isso acontece dioturnamente e nós não apenas aceitamos, mas reforçamos e repetimos o jargão como papagaios. “Cancelado isso”, “ Cancelado aquilo”.

Mas que diabo é isso? Então um ser humano, com uma história, com uma vida e também estando ligado a outras vidas pode mesmo simplesmente ser cancelado como uma passagem aérea? Quem decide isso? A quem cabe o poder de executar a sentença? Qual é a qualidade do julgamento? É difícil não pensar nas perversidades perpetradas por grandes aglomerados de idiotas. E todo ser humano, quando movido pelo ódio, pela maldade e pela frivolidade, torna-se irremediavelmente idiota e incapaz de se aproximar da justiça.

Mas se antes destruir vida era mais difícil, mais complicado e até mais arriscado, hoje é simples. Basta pegar algumas frases fora de contexto, alguns erros cometidos (afinal, todo ser humano faz cagada) ou uma discordância veemente sobre algum assunto em voga. Os motivos estão postos e as provas, cabalmente circunstanciais, são mais do que o suficiente. Faça-se a “justiça”.

Alguns botões, alguns likes e reposts, pronto. Cancelado. Como é que é isso? Será que você também percebe que mais perigoso do que o ato é a cultura que estamos criando? Percebe que ela se baseia em nada e leva a nada, mas com virulência e banalidade assustadoras? Note o óbvio: é fácil se tornar um pária a troco de nada. Por uma frase distorcida, uma foto infeliz, um comentário mal colocado. Pronto.

Estamos criando, com cada vez mais sucesso, uma cultura de medo, artificialidade, futilidade, mentira e coerção. E o ritmo é exponencial. Somos quem precisarmos ser, como em Black Mirror. Se seu rating cai, você se torna ninguém. Para aumentar seu rating, você precisa ser uma mentira completa. Mas uma que agrade, caso contrário, você já era. Parecia ficção, era profecia.

Olhe em volta. Você consegue confiar? Onde foi que o seu radar se quebrou? Quando foi que passou a ser normal aceitar “cancelamentos”? Quando foi que o nosso poder de questionar, opinar, decidir e escolher ficou tão passivo? Por que nós aceitamos tão facilmente o cancelamento alheio? Egoísmo? Queremos ver o circo pegar fogo? Gostamos desse poder mesquinho de punir que nos incomoda? Mas e se, de repente, fosse com você?

Olhe em volta e se pergunte: faz sentido? Qual é o limite disso? Quem decide o que é justo? Quais são os pesos e as medidas? E você? Está realmente imune a isso? Já pensou em ser cancelado como uma compra indesejada? Pense bem. Você é mesmo perfeito? Você é realmente capaz de ser quem é sem incomodar ninguém? Você aí, que me lê agora, está assistindo a tudo isso que está acontecendo e aplaudindo? Então, decore bem as falas da sua personagem e se prepare para não confiar em nada, nem em si mesmo. Ou, então, conserte o seu radar. Isso não pode estar certo. Boa segunda!

 
 
 

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Since 2021. por Rannison

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