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Sobre Viver e Sobreviver


"Você vive ou só sobrevive?" Essa era a pergunta que eu me fazia depois de conversar com o Fábio há duas semanas. Vizinho e amigo dos meus pais há uma década, ele ficou internado, vítima de COVID, por quase um mês. Passou 20 dias no CTI e chegou muito perto de morrer. Agora em recuperação, generosamente, me recebeu em sua casa para uma conversa.

Ao chegar lá, fui anunciado pela Luíza, sua filha, e a Lucimar, sua esposa, me conduziu escadaria acima até o quarto do casal, onde ele estava de repouso. Apesar disso, Fábio fez questão de ficar de pé e apertar minha mão. Aos 49 anos, tem um físico forte, olhos atentos e voz firme. Os cabelos brancos nas frontes se misturam aos escuros e, com a barba, também grisalha, emolduram o rosto do pai, marido e ciclista de sorriso fácil. Qualquer um, diante dele, pode sentir a fome de vida que existe naquele homem. Contemplei por alguns segundos esse entendimento, puxei uma cadeira e fui fazendo perguntas.

Ele ia respondendo, mostrando como já estava conseguindo caminhar, os exercícios que precisa fazer na fisioterapia, os equipamentos que utiliza, o saturador (que fez questão de colocar no meu dedo, para eu entender como funciona) e algumas fotos suas no hospital. Fábio ficou quase 30 dias internado, teve mais de 80% do pulmão comprometido pela COVID e se recuperou de forma milagrosa.

Com seu jeito simples, direto, sem rodeios, me contou a sua história emocionado. Em alguns momentos, mesmo tentando, não se conteve e chorou, escondendo o rosto nas mãos e pedindo desculpas, como se houvesse algo de errado naquilo. Num desses momentos me disse: "Quando me colocaram na ambulância, naquela maca, todo 'amarrado', sem poder me mexer; me senti tão impotente, tão só, aquilo é tão ruim. Pensei, 'Vou morrer!'"

Mas, Fábio pensou errado. Depois de mergulhar na escuridão por algum tempo, me contou, percebeu que havia uma chance. Estava vivo e tinha a família inteira do seu lado. Por mais que a situação fosse ruim, faria o que pudesse para sair dali. Disse que se deixou levar pela negatividade nos primeiros dias, mas que logo percebeu que aquilo só estava atrapalhando.

"Todo dia traziam para gente uma garrafa de água mineral e falavam que tínhamos que beber. Os horários de comer também eram todos certinhos. Todo dia era a mesma coisa." Ao notar aquilo, todo o foco de Fábio foi absorvido: ele ia ser o melhor em seguir aquela rotina, ia se curar e voltar para a sua família. De repente, deixou a negatividade de lado e concentrou-se em seguir o plano: acordar, fazer sua higiene, beber água, comer, esperar a enfermeira vir limpar seu leito, beber água, comer, urinar…

"Eles tinham um lugar onde dava para ver a urina de todo mundo. Minha urina ficou 'show'! Era a melhor de todas." disse ele, orgulhoso, explicando como ia encontrando motivação em pequenas coisas. "Usar fralda era muito ruim e não podia me mexer muito porque colocaram uma sonda aqui na altura do meu quadril. Precisava de ajuda para tudo. Sentia uma vergonha danada nos primeiros dias." me confidenciou, dizendo que, ao se ver naqueles trajes, lembrou-se da morte do pai que tinha falecido de câncer enquanto também usava fraldas, internado em um hospital.

Conforme ele falava, eu ia imaginando o cenário: desconforto físico extremo, emocionalmente abalado, mentalmente esgotado. Como sair de uma situação dessas? Não cheguei a perguntar, mas Fábio me respondeu: pequenas coisas. Aprender a fazer a barba na cama com recursos limitados, por exemplo. Verificar a urina, beber água, comer, repetir tudo no outro dia. Ele não lutava com a situação, não pensava em morrer e nem em ganhar um Oscar. Só fazia a próxima coisa que tinha que fazer. Vivia o próximo segundo o melhor que podia, totalmente concentrado naquilo que estava fazendo. Só por aquele agora, só por aquela ação.

Você consegue imaginar isso? Colocar toda a sua intenção, toda sua energia em uma ação? Mesmo que seja a coisa mais banal do mundo, faze-la como se sua vida dependesse dela. Com o tempo, o plano funcionou: Fábio saiu do CTI COVID e foi para o CTI. Vitória! Mas, contou que as primeiras noites no novo leito foram difíceis. Dormiu mal, o ambiente era diferente, a equipe diferente. Ele precisava se readaptar.

Numa dessas noites, foi acordado pela remoção de um dos companheiros de CTI que morrera. A movimentação o acordou e ele viu todo o processo de retirada do corpo. "Colocaram o cara num saco preto ali, na minha frente. Dá para ouvir o barulho do corpo encostando na maca de metal, tudo. No outro dia tinha outro paciente no lugar dele."

Com o tempo, conforme ia se recuperando, começou a ter "pequenos" prazeres, como um respirador especial alugado pela família para apoiar a recuperação. "O respirador normal, depois de um tempo, machuca o nariz. Resseca tudo. Com aquele, o ar vinha quentinho. Tinha um fluxo maior e dava para sentir aquele ar maravilhoso. Uma delícia." O simples ato de respirar, Fábio me ensinou, pode ser uma delícia, um prazer fantástico.

Dias depois, Fábio sairia do hospital. Vitória! Sua família tinha feito uma força tarefa para traze-lo de volta: contrataram médicos, alugaram respiradores, compraram medicamentos. Fábio, de sua parte, lutou com tudo que tinha para voltar para casa. Cada gota d'água, cada acordar e se alimentar, tinha valido a pena. Um dos seus primeiros pedidos antes de voltar, foi para minha mãe: uma foto da Kona, nossa cachorra. "Ela sempre me recebia no portão quando eu voltava para casa.", disse.

Eu olhava Fábio como quem olha um herói, me perguntando se teria conseguido voltar se estivesse no seu lugar. Contudo, ele só estava feliz em estar vivo, não se achava um herói. Na verdade, creditava todo o mérito à sua família: "Lucimar foi uma guerreira", "Minha cunhada foi meu anjo da guarda, sem elas não sei se teria conseguido." E aí fui eu quem teve que fazer um esforço danado para não chorar. Que história, que lição.

Saí da casa do Fábio meio desnorteado, perguntando a mim mesmo “Você vive ou só sobrevive?” porque o que ele me falou ali, me mostrou como eu estava dando valor às coisas erradas. Porque são as pessoas à nossa volta que nos tiram do poço mais escuro de solidão e medo, são elas que lutam por nós quando não podemos, elas são o motivo que nos faz lutar com tudo que temos para voltar para casa, são o nosso laço com a vida.

E são as "pequenas" coisas que contam. As grandes são só os efeitos delas. É sobre ver beleza na varanda de casa, num latido da cachorra do vizinho, em conseguir respirar sem ajuda de aparelhos. Tudo aquilo que parece tão banal, tão garantido que você nem percebe, na verdade são dádivas da vida. E é preciso ver a beleza oculta, porque é isso que te traz de volta. São as "pequenas"coisas que te mantém forte.

Aprendi também com o Fábio que viver é diferente de sobreviver. E acho que ele me explicou, sem querer, de uma maneira muito simples. Perguntei a ele: "Quais eram as suas preocupações no fim de semana antes de ser internado?" ele pensou um pouco e me respondeu "Estava pensando em terminar a reforma, nas contas para pagar, essas coisas." Mais à frente na conversa, perguntei "O que você pretende fazer de diferente agora (que tem uma segunda chance)?" e dessa vez ele não hesitou "Quero ser uma pessoa melhor e ajudar mais os outros."

Ao ouvir aquilo, me veio um lampejo, um esclarecimento: "Viver tem a ver com fazer mais pelos outros, sobreviver tem a ver com fazer mais só por nós mesmos." Fui- me embora com a mente mergulhada em pensamentos, mas o que mais me tocou foi perceber como sobreviver a uma situação daquelas pode nos despertar o desejo de realmente viver. Enquanto a dádiva de viver sem maiores problemas pode nos tornar conformados com apenas sobreviver.

Você valoriza o ar que está entrando em seus pulmões agora? Diz às pessoas que ama o quanto elas são importantes? Você vê a preciosidade das pequenas coisas? Consegue enxergar a beleza oculta? O que você quer fazer pelos outros? Qual o verdadeiro valor da sua vida? Responda a si mesmo agora, sinceramente, porque não há mais tempo para fingir ou deixar para lá: “Você vive ou só sobrevive?".


 
 
 

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Since 2021. por Rannison

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