Um Café com Dona Nonô
- rannison rodrigues
- 2 de jun. de 2021
- 5 min de leitura
Atualizado: 15 de jun. de 2021

Um domingo desses fui visitar a avó da Helena (minha ex-mulher). Dona Nonô, no alto do seu 1,40m e poucos de altura, traz sempre um sorriso tranquilo. E seus olhos se espremem com tamanha ternura quando sorri que parecem estar fechados. Os cabelos muito brancos cortados bem curtos, emolduram o rosto sereno e enrugado de quem já viveu 96 anos. Ela recebe a todos com uma simpatia espontânea e faz questão de ir busca-los ao portão. Mora sozinha agora, antes morava com um de seus 5 filhos que, infelizmente, morreu há 5 anos. Os passinhos curtos da delicada figura de cabelos grisalhos causa, ao primeiro olhar, a impressão de fragilidade. Ledo engano.
Dona Nonô tem uma mente ágil, está em contato constante com as pessoas e mantém a família toda informada e interagindo. Por intermédio dela, todos se aproximam de todos. É presença garantida nos festejos familiares e é também boa de garfo. “Vou comer pra não perder o dinheiro.” diz ela, por exemplo, antes de uma refeição farta e “politicamente incorreta”. Conta histórias que já aconteceram há muito tempo com riqueza de detalhes, lembra datas de aniversários das dezenas de netos e bisnetos, sobrinhos, sobrinhos-netos, filhos, irmãs, primos, etc. Está sempre em movimento, adora conversar, cuidar de seu jardim e recebe a todos perguntando: “Você aceita um cafezinho?”. Quando aceitam ela emenda: “Passei um agorinha mesmo.” ou “Vou passar um pra gente rapidinho.”
Seu sotaque mineiro vai colando as palavras e formando frases. As frases se abraçam formando histórias. E dali a pouco ela vem com os passinhos tranquilos segurando uma garrafinha térmica, xícara e pires. Coloca o café e pergunta: “Você vai querer açúcar?”, eu sempre respondo que “Não, obrigado Dona Nonô.”. E ela emenda: “Nossa senhora, café sem açúcar não dá, não.”, abre um sorriso condescendente e sentamos à mesa para conversar. Nessas ocasiões, sempre fico fascinado com o seu jeito de falar das coisas de forma tão simples. Nada é complicado quando ela explica. É como um Google Tradutor da vida. Acredito que, se colocássemos líderes israelenses e árabes à mesa da cozinha de Dona Nonô, com cafezinhos açucarados (ou não) e a deixássemos explicar as coisas por alguns minutos, eles sairiam de lá com um tratado de paz perene e se achando tolos. “Como não entendemos isso antes?” pensariam eles.
Eu também pensei isso naquele domingo. De frente para a minha xícara de café sem açúcar, com o queixo apoiado na mão, ouvia silente às histórias, interrogações, exclamações e risadas de Dona Nonô, que estava sentada ao meu lado. Sempre sinto, além do fascínio de que já falei, uma certa reverência perto dela. Sei que há ali, naquele pequeno ser humano, muita sabedoria e também muita força. Ela ia contando os causos dos amigos e da família à Helena, e eu ia aproveitando para ouvir e rir um bocado. Até que chegamos ao tema: plantas. Eu tinha algo a contribuir, pensei. Ela contou das suas orquídeas e de como elas estavam crescendo bem. Contou também que muitos vizinhos e amigos traziam suas plantinhas em estado terminal para que ela as “salvasse”. Aproveitei a oportunidade e emendei: “Então, Dona Nonô, eu também ia trazer uma para a senhora tentar salvar. Muito bonita: um junípero, mas ela já estava morta, por isso mudei de ideia.”. Ela não comentou nada. Achei que o assunto tivesse passado. Mas não tinha.
Alguns minutos depois, nos contou a história de uma vizinha sua que havia levado uma planta, pedindo-lhe que a “salvasse”, pois estava morrendo. O vegetal moribundo foi prontamente acolhido e, passadas algumas semanas, estava recuperado. Depois de alguns meses começou a dar flores muito bonitas e Dona Nonô convidou então a vizinha para ir vê-lo. A vizinha não foi. Estava muito ocupada, sempre correndo de lá pra cá e não conseguia passar lá para dar uma olhadinha na planta. Muito trabalho, dizia. Embora nossa querida narradora não tenha apontado a incoerência diretamente, é óbvio que se uma pessoa tem tempo para levar uma planta morrediça até você, deveria ter também para ir vê-la depois de reabilitada. Não é mesmo?
Pois Dona Nonô convidou novamente. Dessa vez, algum tempo depois do primeiro convite, sugeriu que a amiga não apenas fosse ver a plantinha, mas que também a levasse para casa, porque estava muito bonita e totalmente recuperada. A vizinha sugeriu então que ela ficasse com a planta. Os motivos eram os mesmos: falta de tempo, não sabia cuidar direito, não queria ser uma assassina de vegetais inocentes. “RRResultado: ela estava é com preguiça e não queria cuidar da planta.” disse Dona Nonô, que sempre encerra seus relatos com um “RRResultado:…”. E eu entendi ali, com aquela história, que estava recebendo um ensinamento. Não sei até agora se queria me ensinar ou não. E se queria, não sei se era isso.
Mas entendi que ela estava falando de uma lei da vida, não apenas de uma situação de vida. A planta era um símbolo para outras coisas que precisamos cultivar. Um sonho, por exemplo, ou qualquer projeto de longo prazo. Mantê-lo vivo apesar dos desencontros que a vida pode trazer é difícil e dá trabalho, mas é possível. No entanto, é a preguiça, mais do que qualquer outra coisa, que nos faz inventar desculpas e fugir à responsabilidade. Tentamos terceirizar o serviço.
Por mais que a gente diga por aí que não dá para cuidar das nossas “plantinhas”, a verdade é que “Cuidar de uma planta não é tão difícil, você é que é preguiçoso.” (NONÔ, Dona (com adaptações)). E não é só isso. Somos muito imediatistas também. Desistimos facilmente de coisas que não dão um “retorno” rápido. Só que tudo na vida tem um ritmo. O mesmo vale para os nossos sonhos, projetos, etc. Eles têm seu próprio tempo para florescer. Nossa parte é continuar cultivando, regando a plantinha, não importa o que aconteça.
Dona Nonô nos contou, nesse mesmo dia, que tinha plantado um pé-de-não-sei-oquê que, durante algum tempo, pareceu que não ia “vingar”. No primeiro ano a planta não deu flores. No segundo ano, porém, floresceu linda e generosamente. Lembrando de como tinha sido bonito, nossa anfitriã informou com um sorriso: “Esse ano ainda não botou flor, vai ver não floresce de novo.”. Para ela, não fazia diferença quando ou se as flores viriam. O que faria, no entanto, estava óbvio: continuaria cultivando. Não era recompensa o que movia aquela senhorinha, era o valor em si de fazer a sua parte. Sua felicidade estava no caminho e não na chegada.
“Como é que eu não entendi isso antes?” pensei comigo mesmo. Um tanto envergonhado com a minha preguiça sendo jogada na minha cara, confesso, mas muito grato pelo ensinamento. Krishna disse a Arjuna: “Você tem o direito de executar seu dever prescrito, mas não tem o direito aos frutos da ação. Jamais se considere a causa dos resultados de suas atividades, e jamais se apegue ao não-cumprimento do seu dever”. Dona Nonô traduziu: continue fazendo o seu melhor, não importa o que aconteça. Vá cuidar da sua planta! É o caminho que conta, e é preciso coragem para admitir a preguiça, superar as próprias desculpas, continuar e nunca se deter.
“RRResultado:…” consegui outra planta: um bambuzinho. Me despedi do junípero com um pedido sincero de desculpas. Sentia um profundo remorso: deveria ter cuidado melhor dele. Afinal, era uma vida que estava aos meus cuidados. Dessa vez, espero, percorrerei o caminho de maneira mais digna. E quando ele estiver crescidinho pretendo oferece-lo a Dona Nonô como um presente. Acho que vai ficar bem bonito no jardim dela. E também gostaria muito de retribuir a lição com a prova viva de que eu entendi o que ela disse. Aquilo mudou minha maneira de ver a vida. Menos a parte do café. Já imagino ela perguntando: “Você vai querer açúcar?”, e eu respondendo que “Não, obrigado Dona Nonô.”, para logo depois ouvir o tradicional: “Nossa senhora, café sem açúcar não dá, não.” e receber o sorriso condescendente de olhinhos espremidos.
Viajei e tomei café com Dona Nonô através do seu texto... Mas o meu tinha açúcar! 😅