Um Conto Sem Nome (Parte I)
- rannison rodrigues
- 1 de jun. de 2021
- 3 min de leitura
Numa cidade muito distante, de um país muito distante, as pessoas viviam em caixas. Não moravam apenas, mas também se locomoviam nelas. Logo após nascerem e pouco depois de morrerem, iam parar em caixas. Sua comida vinha dentro delas, e para consegui-la precisavam passar em estações de pagamento, curiosamente chamadas de “caixas”. Comunicavam-se através de pequenos dispositivos em forma de paralelepípedo, com telas retangulares brilhantes e tinham, nos mais variados lugares, outras caixas, com telas maiores também brilhantes, onde podiam receber informações sobre o que acontecia ao seu redor e até mesmo se divertir.
Essas pessoas tinham uma ideia em comum: seu tempo deveria ser investido em conseguir caixas. E quanto mais elaboradas fossem, melhor. Elas se esforçavam e se dedicavam durante toda a vida para isso. Trabalhavam o melhor que podiam e, chegavam a adoecer ou até mesmo a mentir, trair e roubar outras pessoas para atingir esse objetivo. Ter caixas significava ser respeitado, querido, admirado, mas também invejado e, por vezes, até odiado. Para onde quer que olhassem, encontravam a mesma mensagem: “O sentido da vida está em ter caixas, pois são as caixas que nos deixam seguros e confortáveis, isso é viver bem.”
Entre essas pessoas, havia um coveiro. De compleição física frágil e modos taciturnos, o homem de meia idade e cabelos ralos, já se dedicava ao ofício há mais de 20 anos. Não possuía muitas caixas. Na verdade, não se importava nem um pouco com elas. Se pudesse, costumava confessar aos amigos, nem as teria. “No final, são as caixas que nos têm.”, ele costumava dizer. Gostava de seu trabalho, principalmente, por causa do silêncio. Na caixa onde morava, não tinha as telas brilhantes que a maioria das pessoas tinham e só carregava consigo o pequeno paralelepípedo comunicador por muita insistência dos amigos.
Gostava de estar só, consigo mesmo. De olhar pela abertura de sua caixa e ver as outras, suas vizinhas, empilhadas, umas em cima das outras. Costumava observar as luzes que escapavam pelas aberturas delas. Sempre pensava no que as outras pessoas, lá dentro, estariam fazendo. Será que estavam sorrindo, ou será que o dia teria sido de tristeza? Da caixa onde vivia, via o céu enquadrado, como em um retrato. Não que a abertura de onde olhava fizesse isso, eram os blocos de caixas vizinhas, monolíticos, que enquadravam o firmamento diante dos seus olhos.
Todos os dias, seguia o mesmo ritual, acordava, comia, ia trabalhar, comia, trabalhava um pouco mais, comia, voltava para casa, comia e ia dormir. Era, pensava ele, como uma programação. Seguir a monótona liturgia dia após dia, fazia crescer dentro do homem uma inquietação que não conseguia formular. Porém, toda vez que precisava responder à pergunta “Débito ou Crédito, senhor?” nas estações de pagamento, pensava, “É para isso que eu existo? Responder débito ou crédito e depois morrer?”.
Um dia, enquanto acompanhava mais um enterro, dentre tantos a que já tinha assistido. Sentiu algo puxar-lhe pela perna da calça. Estava absorto nos seus próprios pensamentos, em meio à cacofonia de choros, conversas, toques de caixas comunicadoras, e foi despertado pelo puxão. Uma menina lhe chamava em tom urgente, com os olhos molhados de lágrimas e o olhar resoluto de quem busca alguma coisa. Intrigado, o homem se abaixou para descobrir o que a menina queria. Talvez esteja perdida, pensou.
Olhando diretamente nos olhos do homem, agora frente-a-frente, a menina perguntou: “Moço, me disseram que o senhor é quem cuida das pessoas depois que elas morrem. Então, o senhor pode me dizer para onde a minha vovó vai? Minha mãe me disse que ela precisa ir para um lugar melhor. Que lugar é esse? Onde ele fica? Eu posso ir lá de vez em quando? É que eu sinto muita saudade dela.” Comovido com a pureza e a dor da criança, o homem respondeu simplesmente: “Eu não sei onde fica, mas sei que só podemos ir lá depois de sermos convidados. Nem mesmo eu sou autorizado a saber como é lá. Mas todos, um dia, são convidados. Você também será convidada e, quando esse dia chegar, você vai encontrar com a sua vovó. Até lá, você precisa ser feliz e viver o melhor que puder.”
Depois de pensar alguns instantes, a criança perguntou ao homem: “Por quê? Por que eu preciso viver o melhor que eu puder? Como se faz isso? Se eu estou triste agora, então não vão me convidar? Porque eu já vi a minha vovó ficar triste também, e ela foi convidada. Pessoas que ficam tristes também podem ser felizes? Afinal, o que é ser feliz?” A inteligência aguda da menina, rasgou o homem. Aquela reposta não podia ser encontrada em nenhuma caixa. Ficou em silêncio alguns instantes, atordoado. Foi ajudado pela intervenção da mãe da menina que veio buscá-la e levá-la embora. Mas não foi salvo, a pergunta da menina ainda ecoava dentro do homem: “Afinal, o que é ser feliz?”.

Muito bom!!