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Um Conto Sem Nome (Parte II)

A partir daquele dia, cada gesto, palavra e ação do homem parecia querer saber a mesma coisa. Tomava banho tentando responder à pergunta, comia pensando nela e ia dormir procurando uma solução para o problema. Sentia que não era realmente feliz e que conhecia pessoas que também não eram. Mas não conseguia, sinceramente responder o que era ser feliz. Afinal de contas, pensava, uma pessoa feliz não teria dificuldades em responder o que é isso.

Uma noite, antes de dormir, olhou para o céu encaixotado entre os monólitos da cidade, e imaginou como algo tão grande quanto o céu podia parecer tão pequeno, tão limitado por coisas menores, como paredes de caixas empilhadas. Uma ideia então, lhe veio à mente. Talvez a felicidade fosse como o céu. Estava sempre ali, era vasta e perene, mas as caixas não deixavam ver mais do que um relance de sua imensidão.

E se fosse assim também com as pessoas? E se além de responder “Débito” ou “Crédito”, existisse algo mais? Ele tinha pensado muito em como seria a morte, mas aquela menininha, com sua ingenuidade, o tinha provocado a pensar no que seria, realmente, a vida. E, se cada pessoa fosse como o céu: tão vasta quanto o mundo inteiro, mas espremida entre caixas, que só as deixavam ver uma fração da sua magnitude? Aquilo, sentiu o homem, parecia verdade. E pensar naquilo, notou, o fazia se sentir…feliz.

A ideia o acompanhava para onde ia: caixa de pagamento, caixa de transporte, caixa-residência, caixa comunicadora. Falou da ideia aos amigos. Alguns não entenderam bem, outros não quiseram continuar aquela conversa enfadonha e, outros ainda,sequer prestaram atenção pois estavam entretidos com as caixas comunicadoras. De todos os amigos, apenas um lhe deu atenção e entendeu o que queria dizer. Ao final da conversa, no entanto, antes de se despedirem, lhe perguntou: “E se você estiver certo? Como vai viver com isso? Se disser às pessoas que elas são céus presos dentro de caixas, elas primeiro rirão, e depois odiarão você, porque isso é tudo que elas têm. As pessoas não olham para o céu, tudo o que nos interessa são caixas.”

As palavras do amigo não foram capazes de demover o homem. Um de seus conhecidos era porteiro no bloco de caixas-residência mais alto da cidade. Apenas pessoas muito ricas podiam viver ali, em caixas enormes e luxuosas, acima da paisagem saturada. De lá, sabia, era possível ver perfeitamente o céu. Pediu então ao amigo que arranjasse ocasião em que ele pudesse ir ao topo do bloco. Quando o dia chegou, seu anfitrião lhe confidenciou que nunca tinha ido até o topo. Nunca, em 4 anos, tinha visto razão para isso, disse, porque ali, do centro de segurança, onde trabalhava, as câmeras lhe mostravam, em mais de cem telas, tudo nas imediações, inclusive o céu.

Entraram na caixa-transporte-vertical e subiram até o último andar, onde ficava a piscina. Enquanto subiam, o coração do homem ia acelerando com a expectativa. Sentia que algo importante estava prestes a acontecer. Quando as portas da caixa metálica se abriram, o sol da tarde inundou os olhos do seus e o estonteou. Seu amigo também ofuscado soltou pela luz uma exclamação de dor. “Tinha esquecido que era assim, nos filmes é diferente.”

O homem não pôde ouvir às palavras seguintes do amigo. Seus olhos não doíam mais e seus ouvidos estavam surdos ao que acontecia à sua volta. Seus olhos fixos no céu e na paisagem lá embaixo. Tudo era pequeno dali de onde olhava, pensou, apenas o céu era imenso. As caixas pareciam minúsculas ali de cima, desimportantes, insignificantes. As pessoas eram pontinhos microscópicos em movimento, ele mesmo era diminuto, notou. E entendeu que não havia diferenças, não havia separação. Ele era parte de tudo aquilo, e tudo aquilo era parte dele.

Mesmo o céu, infinito, parecia pequeno de sua janela, mas era, na verdade, imenso. Então, também os homens, microscópicos, eram infinitamente grandes. Era a o ponto de observação que importava. De sua janela o céu parecia minúsculo, e ele parecia grande. Mas dali, era diferente. A felicidade, percebeu, dependia diretamente da escolha do ponto de observação. E as caixas, percebeu ele, não permitiam perceber isso. Elas davam uma dimensão errada da verdade, e impediam as pessoas de entender “Afinal, o que é ser feliz?”. Seu coração se encheu de amor, compaixão e…felicidade. Estava convicto: sabia o que era felicidade, afinal.

Quando conseguiu ouvir o amigo novamente, contou-lhe, com os olhos marejados, o que tinha acabado de compreender. O outro homem, confuso, não entendeu o que ele quis dizer. Passaram mais alguns instantes ali e o homem decidiu ir embora. Precisava contar aos outros o que tinha descoberto, eles poderiam dizer a outras pessoas e assim mais gente compreenderia a felicidade, saberia sobre as caixas e sobre o que era realmente importante.


 
 
 

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