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Uma Alma Viajante

(imagem: Killian Jornet)

"Um homem precisa viajar. Por sua conta. Precisa viajar por si, com seus olhos e pés, para entender o que é seu. Para um dia plantar as suas árvores e dar-lhes valor. Sentir a distância e o desabrigo para estar bem sob o próprio teto. Um homem precisa viajar para lugares que não conhece para quebrar essa arrogância que nos faz ver o mundo como o imaginamos, e não simplesmente como é ou pode ser." (Amir Klink, com adaptações)

Amir não poderia estar mais certo. E há certas viagens que são realizadas dentro de si mesmo, indo além de nossas fronteiras interiores. Além das desculpas, dos hábitos e do medo. Somente ao cruzarmos essas linhas imaginárias, a vida se revela. Não a vida que imaginamos, mas a vida que é, a vida que pode ser.

Segundo Chorão, “O medo cega os nossos sonhos”, mas eu acredito que somos nós que ficamos cegos. Nossos sonhos permanecem lá, como um remorso, como um nó na garganta, desejando se manifestar. Isso já aconteceu com você? Por muito tempo, aconteceu comigo. Meu medo prevalecia, mas eu pensava que estava apenas sendo sensato.

Nenhuma vida é plena quando cedemos às desculpas para não confrontar nossos medos. Descobri isso em um domingo muito quente, durante um longo treino de corrida na montanha. Eu precisava cobrir uma distância que nunca tinha percorrido antes, sob um sol escaldante de quarenta graus. O resultado foi um fracasso doloroso, com muitas cãibras, dores e uma recuperação lenta.

Quando parei o treino, mal conseguia andar. Após algum tempo, tentei dirigir, mas minhas pernas simplesmente não queriam obedecer. Um vendedor ambulante que tinha uma pequena barraca no caminho do parque onde eu corria me viu e perguntou: “Meu irmão, cê vai treinar hoje com esse calor!? Cêé lôco…” Foi então que percebi que estava praticamente sozinho na trilha durante o treino. Foi um dia difícil.

Depois de acumular experiência com maratonas, triatlos, ultramaratonas, ironmans, etc., confesso que aquela experiência teve um impacto psicológico muito duro. Não passava por aquilo há muitos anos. No domingo seguinte, no entanto, retornei à mesma montanha. “Vou concluir aquele treino hoje”, disse a mim mesmo.

Ainda não havia me recuperado completamente e sentia muita dor. Embora tivesse treinado todos os dias, os exercícios foram leves e de baixa intensidade. Olhar para o início da trilha, ainda sentindo a dor da semana anterior, ativou uma memória. Automaticamente, uma ansiedade começou a surgir dentro de mim.

Eu estava com medo. Uma voz na minha cabeça dizia: “Eu vou conseguir hoje.” Outra, no entanto, dizia: “Você tá cansado, vai com calma.” Continuei o treino e, claro, o desconforto aumentou. “Talvez eu não precise fazer tudo. Se eu fizer quase tudo, já tá ótimo”, “Talvez devesse ter esperado um pouco mais antes de vir”, “Eu nem quero tanto assim fazer esse treino…”

Porra nenhuma! Aquele pensamento, aquele “eu nem quero…”, foi como uma gota d’água em um copo prestes a transbordar. “Eu não quero?” pensei comigo mesmo. “Como assim eu não quero, porra?” Estava muito cansado. Nessa altura, ainda faltava um terço do treino, e já haviam se passado quatro horas subindo e descendo a mesma trilha. Mas aquele pensamento mudou tudo.

“Eu quero, sim. Quero muito. Quero mesmo. Vou fazer isso, nem que seja rastejando.” Parei, olhei o relógio e comecei a subir acelerado. Era raiva que eu sentia. Ao terminar o treino, experimentei uma sensação magnífica de leveza. Meu corpo estava exausto, mas minha alma estava em êxtase. “Meu Deus, como eu amo esse sentimento. Que sentimento é esse?”, perguntei.

“É a verdade.” Respondi a mim mesmo, quase instintivamente. Aquilo era apenas a verdade. Pura, simples, verdadeira. Sem desculpas. Sem aquele “nem quero tanto assim.” Atravessar aquela fronteira me fez ser fiel a mim mesmo, à minha vontade, à minha verdade. Me fez superar o medo e conhecer esse sentimento maravilhoso que está do outro lado.

Ao longo do meu desenvolvimento como ser humano, fui profundamente ferido. Procurei, à minha maneira, curar essas feridas com coisas que eu podia controlar. E ao fazer isso repetidamente, me tornei bom em controlar coisas. No entanto, há algo que o controle sufoca: a verdade. Desde criança, muitas vezes sorri e fui forte quando o esperado em tais situações era apenas chorar. Isso molda a gente.

Minha vida me ensinou cedo que eu precisava ser forte, ser sensato. Ao fazer isso, acabei sufocando aquela parte mais verdadeira de mim. Dizendo “não” quando queria dizer “sim” e vice-versa, não viajando para além das fronteiras do seguro. E cada vez que eu me recusava a embarcar na jornada, tudo começava com um “eu nem quero…”.

Mas eu queria. Queria a festa, queria o abraço, queria o chocolate. Eu queria, mas não admitia, não dava o salto de fé. Eu vivia uma vida estrangulada pelo medo, pelas desculpas, pela arrogância de que fala Amir Klink. Eu vivia acorrentado às lembranças que me assustavam e causavam dor. Eu vivia não vivendo por causa das desculpas que eu criei para evitar reviver o que me machucou.

No entanto, quando desci daquela montanha, decidi que não mais. No dia seguinte, cruzei outra fronteira. Ainda estava andando como um pato manco, é verdade, mas me enchi de coragem e fui falar com uma certa moça da academia onde treino. Já a via ali há alguns anos. Meses antes, tinha tido a coragem de convidá-la para sair. Meu medo da rejeição, no entanto, me fez reagir mal durante a interação. E então, pensei comigo mesmo: “Eu nem quero…”.

Veja, meu querido leitor, não é que não haja outras mulheres no mundo. Certamente há outras mais bonitas, mais isso ou aquilo, mas o problema é que essa moça, especificamente, mexe comigo de uma maneira que nem consigo explicar. Após quase três anos “na caverna”, evitando sequer mencionar a palavra “namoro”, ela é uma mulher com quem eu namoraria. Talvez assim seja mais fácil entender o que quero dizer.

Mandei mensagens, ela não respondeu. Fui falar com ela. Mal olhou para mim, falou algumas coisas de lado e nada mais. Tentei novamente no dia seguinte. Mesmo resultado. “Ok, fiz a minha parte.” Mais uma vez, aquele sentimento de verdade. Era um “não”, mas era um não real. Eu consegui vencer meu medo, superar meu ego. Eu fiz a jornada.

Antes disso, minha mente me contava a história do “eu nem quero…”, mas eu sabia que queria. Profundamente. Agi mal na primeira vez, movido pelo medo simples da rejeição. Memórias ruins podem construir futuros ruins. Mas quando abandonei isso, quando apenas aceitei minha vontade, mesmo com o “não”, foi libertador. Porque era eu, não meu medo, não meu ego.

Queria muito compartilhar essas situações. Uma de sucesso, de alegria. Outra de insucesso, de frustração. Porque atravessar as fronteiras, viajar por conta própria como diz o Amir, nem sempre vai ser só agradável. Mas quando você consegue viver verdadeiramente, lidar com a dor da subida para realizar uma missão, ou abrir o coração mesmo que seja para uma rejeição sentimental, você é real.

O resultado, na verdade, não importa tanto. O que importa é que seja verdadeiro. É assim que vemos a vida como ela é, ou como pode ser. Depois da muralha de medo que as dores contruiram, tem uma vida que vale a pena. E vale a pena porque é você sendo você, de verdade. Oferecendo amor quando o mundo oferece jactância, insensibilidade, frivolidade. Oferecendo tudo, sem esperar nada, além de ser você mesmo.

Desde aquele domingo, ultrapassei algumas vezes essa barreira. Subi aquela montanha tantas vezes que aquele treino já não parece mais tão assustador. Vi a moça dos meus sonhos mais outras inúmeras vezes. Aliás, querido leitor, a cristã mora na minha rua. Mas tanto a moça quanto a montanha me ensinaram que eu prefiro uma vida sem desculpas, sem “eu nem quero…”.

“Eles dizem que é impossível encontrar o amor / Sem perder a razão / Mas pra quem tem pensamento forte / O impossível é só questão de opinião” Disso os loucos sabem. E eu, fico com os loucos. Porque o verdadeiro amor é aquele que você tem pelo que você é de verdade. Ele está do outro lado do medo. Ele É a razão, o antídoto de todo mal, o veneno de todas as desculpas.

E eu compartilho isso com você porque te desejo esses instantes de verdade. E desejo que eles se prologuem em segundos, minutos, horas, dias, numa vida inteira. Não deixe a sua vida passar fingindo que não quer. Suba a montanha, fale com ela, diga “eu te amo”, o impossível é só questão de opinião, principalmente da sua. Cruze a fronteira. Boa semana!

 
 
 

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